Conheci João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, fabricante dos automóveis Gurgel por volta de 1985 quando, como diretor da Revista Saber Eletrônica, fiz uma visita a sua fábrica. |
Ao chegar à fábrica em Rio Claro, logo me surpreendi com o vigor e entusiasmo de Gurgel, aquele homem que se misturava com os operários, empunhando ferramentas e ele mesmo ensinando as operações mais críticas de fabricação de um carro. Nos mostrou toda a fábrica, nos levou para a pista de prova onde, com ele na direção, subimos barrancos e entramos em pântanos para que ele nos mostrasse que a tração nas quatro rodas do Carajás permitia que ele saísse de qualquer atoleiro e até vimos o então protótipo do BR800, que ainda estava no “esqueleto” e que ele gostaria de dar um nome bem brasileiro: “Tião”. Gurgel nos mostrou também seu carro elétrico Itaipú, uma revolução em termos de ecologia, mas que tinha a séria limitação do peso e do tamanho da bateria chumbo/ácido, que chegava aos 900 kg! Mas isso não o desanimava, pois um dia as baterias seriam mais leves e compactas e o carro seria um sucesso! Almoçamos com Gurgel em sua casa a poucos quilômetros da fábrica e, depois do almoço, na varanda, ele nos contou muito de sua vida. Falou de como sua paixão pela mecânica quase o levou a ser expulso de casa pelo seu pai, quando arrebatou uma locomotiva num leilão da FEPASA e mandou entregála em sua garagem. Queria saber mais sobre seu funcionamento, desmontando-a, mas isso não agradou nada a seu pai quando ele chegou para guardar o carro e encontrou o monstro de metal ocupando o espaço. Falou da reação de seus professores da Escola Politécnica da USP quando disse que seu sonho era fabricar carros no Brasil.
Amaral Gurgel
A resposta do professor “Carros se compram, não se fabricam!” ele não o desanimou. Sua maior glória foi justamente poder levar o primeiro carro de sua fabricação para mostrar ao incrédulo professor, que não pôde esconder sua admiração por aquele misto de inventor, empreendedor e gênio da mecânica.
A fábrica de Gurgel fez milhares de Carajás, Itaipús e BR800, muitos dos quais ainda podem ser vistos nas ruas de nossas cidades. Existe até um clube de proprietários destes carros. A Gurgel não conseguiu ir mais longe dadas as pressões de muitos interesses que não gostariam de ter a concorrência de uma fábrica genuinamente brasileira fazendo carros. Faliu e com ela um sonho, um sonho que fazia os olhos daquele homem brilharem, como pude constatar em minha visita. No início deste ano, depois de quase 10 anos de luta contra o Mal de Alzheimer, Gurgel morreu, deixando para trás um exemplo de perseverança, empreendedorismo e força que deve ser analisado por todos que gostam deste país, que acreditam que se pode vencer pelo trabalho, que sabem que tecnologia não está apenas no papel, mas parte do trabalho no chão de uma fábrica. Nossa homenagem a um grande homem.
Linha de montagem do BR800 em 1988 - Foto Gurgel Motores
Recentemente a marca Gurgel foi adquirida por num empresário que pretende utilizá-la na fabricação de carros nacionais.
Texto publicado originalmente na Edição número 1 da revista digital O Peçalheiro - www.pecalheiro.com.br